8.09.2010

Alteridades Habituais



Eduardo Montelli

Isabel Ramil

Juliano Ventura

Letícia Bertagna

Curadoria de Guilherme Mautone


Consiste em uma apresentação de artistas em formação. Os vídeos, instalações e vídeos-instalações que configuram essa apresentação desdobram os muitos sentidos de um decurso artístico: de apreensão daquilo que é corriqueiramente presente já visando uma posterior elaboração poética, como se os artistas fizessem a leitura da prosa do mundo imbuídos da esperança de engendrá-la diferentemente, de sorvê-la em uma refrescante novidade. As coisas, que facilmente se tornam banalizadas em função de sua insistente existência, são submetidas as maquinações da intimidade, são atravessadas pelos significados inauditos, passam a ocupar outros lugares no dentro e no fora, se renovam. E, ao fim, o que nos é apresentado é o conjunto das muitas manipulações da realidade. O trabalho metafísico de tomar para si, guardar, modificar e, depois, apresentar é o que tece a linha de sutura entre os integrantes.

Em cada artista de Alteridades Habituais podemos encontrar uma inclinação ao guardar; eles desenvolvem em linguagens complementares as múltiplas facetas da retenção ou da contenção.

Eduardo Montelli oferece uma vídeo-instalação na qual a imagem exibida na televisão é vista através que, dentro de si, abriga uma gaiola. Nesta televisão vemos um vídeo do mesmo aquário-gaiola que, ali, contém uma balão em movimento. O jogo sutil de delimitações, semelhante aos processos do pensamento e às maneiras de conceitualização do entendimento que reordena e reagrupa constantemente imagens de objetos, parece traçar sucessivamente pelo espaço a fixação pelo guardar enquanto cativar.

Isabel Ramil apresenta desenhos em nanquim e pastel seco de janelas fechadas. A atmosfera de seu trabalho advém das sensações e impressões difusas de um ser guardado por um espaço-casa e pelos avessos e revezes da domesticidade que esse espaço representa. A impossibilidade de descerrar as janelas desse exílio doméstico significa ir de encontro às oscilações de um estar-presente que parece se modular rapidamente de abundante regozijo e angústias asfixiantes.

Juliano Ventura deposita uma fotografia do céu em caixa de papelão, dando – com esse processo – estofo existencial aos tentames conscientemente fracassados de apropriação do inatingível, do infinito. Essa negatividade baudelairiana (lembremos das nuvens “là-bas... là bas... lês merveilleux nuages!” do poeta francês) e esse fracasso inerente ao processo, parecem dialogar com uma problemática cara às artes visuais, a saber, do fracasso semelhante em proporcionar solidez existencial ao artista e ao contemplador. Dentro do escopo de discussão poética de Juliano Ventura vêem-se o soçobrar e o recrudescer característicos do desejo de guardar e de conter. Desejo que nem sempre é concretizado, mas que sempre se deseja; eis que se delineia uma vontade de reter ou enquadrar, explicitamente frustrada diante das grandes imensidões.

Letícia Bertagna participa com dois vídeos. A doce ironia de É claro que você sabe do que estamos falando instaura explicitamente na exposição uma atmosfera de segredo e aponta para o estatuto da bricolagem videográfica misteriosa, onde são encenados absurdos para o contemplador desatento. O enunciado, bem guardado pelos ruídos incompreensíveis dos variados animais, se despoja de sua obviedade e se transforma em segredo. Hélio, o outro vídeo da artista, traz à luz as heranças permanentes da memória presentes num corpo que oscila no espaço.

As muitas tonalidades do guardar podem ser percebidas entre os artistas. Cada um tende a conter, à sua maneira, aquilo que se consagra nos dias e nos anos pela intrínseca obviedade e pela hirta certeza de existência e significado. O que promove o deslocamento dos objetos comezinhos é a necessidade (mais que justificada, lembremo-nos de Musil em seus Tagebücher) de fazê-los vibrar esteticamente. Os artistas de Alteridades Habituais conseguem desenvolver um diálogo sofisticado quando desconfiam daquilo que nos é dado a perceber e conhecer cotidianamente e quando, guardando e fazendo uso desses guardados, produzem trabalhos atuais, sagazes, que se colocam os finos problemas das artes visuais e que fazem medrar atmosferas estranhas, capazes de capturar o contemplador exatamente naquilo que lhe é mais íntimo e próximo. A aspereza insidiosa que parece alisar a pele de quem observa os trabalhos de Alteridades Habituais faz remissão àqueles processos que são mais íntimos e, por isso, mais estranhos.

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